Painel - Georreferenciamento do patrimônio arquitetônico

08/mar/2023

Há quatro anos, pesquisadores mapeiam edificações no Quadrilátero Central e reúnem documentos que são inseridos em um Sistema de Informação Geográfica (SIG)

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No início do século XX, a família do engenheiro José de Oliveira Reis tinha um comércio na Rua General Osório, no número 147, no centro de Ribeirão Preto. Oliveira Reis foi um dos mais importantes urbanistas do século passado, autor da primeira proposta de Plano Diretor de Ribeirão Preto, encomendada pelo prefeito e apresentada em 1945. É provável que tenha passado a infância ali. Em 1910, funcionava naquele endereço o Pequeno Negócio Pétit Marche, conforme a placa da foto que Ernesto Kuhn fez naquele ano e que foi preservada pelo Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP). Hoje, no mesmo endereço, há uma loja popular de roupas.

A arquiteta e urbanista Ana Teresa Cirigliano Vilela está à frente de um projeto de georreferenciamento do patrimônio histórico e arquitetônico do centro de Ribeirão Preto que permite admitir como hipótese que o local onde funcionava o Pétit Marche seja o mesmo da loja de roupas de hoje. O endereço é atribuído à família de Oliveira Reis na tese de doutorado do arquiteto e urbanista Rodrigo Santos de Faria, que trata da trajetória do engenheiro. Ana Teresa localizou a imagem, atribuindo-a a este endereço, na extensa documentação que vem reunindo há quatro anos e faz parte do projeto que hoje desenvolve no âmbito de sua tese de doutorado no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP).

Desde 2016, cerca de 50 pessoas se envolveram no projeto, entre os quais, os arquitetos e urbanistas Marcelo Carlucci, Gustavo Zeoti e estudantes de graduação. O objetivo é reunir documentos, imagens e informações sobre edificações do Quadrilátero Central, delimitado pelas avenidas Jerônimo Gonçalves, Independência e Nove de Julho.

A história que Ana Teresa propõe-se a contar a partir da pesquisa e disponibilização desses documentos vai além das importantes construções monumentais, como o Theatro Pedro II e a Biblioteca Sinhá Junqueira. O levantamento, segundo ela, permite expor a história urbana a partir da área onde Ribeirão Preto se formou e para além dos grandes marcos arquitetônicos.

Entre 2010 e 2012, a Rede de Identidades Culturais, grupo ligado à Secretaria da Cultura e formado por uma equipe multidisciplinar, realizou o inventário de 698 edificações localizadas no Centro, tomando como base a metodologia utilizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (IPHAN). Este levantamento foi o ponto de partida do trabalho de Ana Teresa.

“Partimos de uma proposta pedagógica que buscava sensibilizar os alunos a olharem para a paisagem do Centro, nela identificando edificações históricas, grandiosas ou modestas, públicas ou privadas, tombadas ou não”, explica Ana Teresa.

Tipo oficinas e lojas

Na primeira fase, desenvolvida entre 2016 e 2018, os alunos foram divididos em 10 equipes encarregadas de fotografar todos os lotes dos 187 quarteirões que integram o Quadrilátero Central. Depois, docentes e alunos selecionaram os imóveis de interesse histórico tomando como base a existência de elementos como platibandas, caixilharia de madeira, alpendres, cachorros, jardins, ornamentos de fachada etc. que marcam a produção arquitetônica da primeira metade do século XX.

Também foram levados em consideração os diferentes usos e as mudanças de comportamento e gosto da sociedade ao longo do tempo. A seleção não foi feita com base em critérios estilísticos. “Nas construções modestas nem sempre esses estilos são perfeitamente reconhecíveis e, principalmente, porque muitos imóveis passaram por reformas, adequando-se às novas necessidades de seus usuários”, explica Ana Teresa.

A partir da análise e seleção dessas fotografias, o grupo refinou os levantamentos e chegou a um número de aproximadamente 300 edificações.

Ana Teresa conta que ao identificar algumas lacunas no trabalho documentos disponíveis no acervo do APHRP foram incorporados, como mapas, fotos e projetos de arquitetura. O grupo considerou que a documentação poderia ser vinculada a esses levantamentos.

O Sistema de Informação Geográfica (SIG) passou a ser utilizado como plataforma de inserção e georreferenciamento desses dados. O grupo utilizou um software livre e gratuito para inserção das informações, com o endereço, grau de proteção, processo de tombamento – quando existente –, autoria do projeto, ano de construção etc.

Nessa nova etapa, iniciada em 2019, como projeto de extensão, houve a colaboração das estudantes de graduação Leticia Fiacadori, Lívia Amorim, Talita Elioenara, Tainah Melchior e Vanessa Laredo.

Às informações iniciais sobre o imóvel são acrescidas fotografias e projetos de arquitetura. Esse talvez seja o maior desafio dos pesquisadores. Normalmente projetos, plantas, alvarás de construção e escrituras são arquivados na prefeitura ou em cartórios. Entretanto, as regras de hoje não existiam em boa parte dos anos do século XX. Muitos imóveis não têm plantas e projetos cadastrados, por exemplo. Até 1902, ano em que um novo Código de Posturas substituiu o anterior, de 1889, sequer esse registro era exigido pelo poder público.

De 1902 a 1913, as construções eram registradas na Câmara Municipal, no Livro de Plantas Aprovadas. Esta é a fonte de informação daquele período e dispõe, na maioria das vezes, dos nomes dos proprietários, o endereço da construção e sua natureza (residencial, comercial etc.). Em alguns registros, não consta o nome do construtor ou arquiteto responsável. Por outro lado, eles observaram a atuação expressiva de alguns profissionais, como Carlos Barbieri e Vicente Lo Giudice.

O APHRP conta com um rico acervo relativo aos processos dos imóveis a partir de 1910, nos quais é possível ter acesso aos projetos de construção e reforma. Essa coleção se estende até os processos com entrada até o 1976. Nessa coleção de projetos, os pesquisadores identificaram engenheiros, arquitetos e construtores que atuaram na cidade, além das transformações nos padrões compositivos, ornamentos, gabaritos e materiais que marcaram a produção arquitetônica na cidade no período.

“Os tipos de informações gráficas também variam de acordo com a natureza do projeto. Há desenhos parciais que se propunham a aprovar apenas a reconstrução da fachada para se adequar às imposições dos Códigos de Posturas. Outros continham plantas, elevações e cortes para a construção de novos edifícios”, explica Ana Teresa.

O Código de Posturas de 1902 impactou também no estilo das construções, pois passou a exigir a adoção de platibandas, utilizadas como ornamento e que em algumas construções exibem as iniciais de seus proprietários e a data de construção.

Todos os projetos destinados a endereços no Centro também estão digitalizados. A digitalização, além de facilitar a consulta a pesquisadores evita o manuseio da documentação, que é frágil.

Os dados disponíveis sobre as edificações são inseridos no sistema, assim como documentos e imagens digitalizadas. Algumas anotações revelam curiosidades, como as dos documentos do Theatro Pedro II: em certo momento, os construtores recusaram-se a pagar os honorários de Hipólito Pujol Júnior, autor do projeto, por considerarem que a construção não era suficientemente nobre.

Na vizinhança do Theatro, na Rua General Osório, existia o Banco de Comércio e Indústria, cujo projeto foi de Ramos de Azevedo. No local há hoje uma loja de departamentos e não existem indicações externas de que o edifício tenha sido preservado.

“Embora haja relatos de que Ramos de Azevedo tenha sido autor de outras obras na cidade, esse foi o único projeto encontrado com a sua assinatura. Na coleção de projetos de Ramos de Azevedo arquivada na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo há também o projeto do Banco do Brasil de Ribeirão Preto”, informa Ana Teresa.

No âmbito de sua tese de doutorado, a arquiteta estendeu os georreferenciamentos das edificações aos mapas e fotografias históricas. Dentre os mapas cadastrais disponíveis no APHRP, foram georreferenciados e vetorizados os de 1884, 1910 e 1918.

Projeto da fachada do Banco do Comércio e da Indústria Ramos de Azevedo 1922

Nomes
“Não são apenas as edificações grandiosas e isoladas que tem importância para a paisagem histórica. As edificações mais modestas também têm sua importância, sobretudo em relação ao conjunto urbano diretamente relacionado à fundação e desenvolvimento da cidade. Para conhecer essa história, é preciso ir lote a lote, investigando as dinâmicas que são próprias da arquitetura e da cidade”, explica Ana Tereza.

A construção do início do século XX em Ribeirão Preto é marcada pela influência dos imigrantes italianos. Não eram necessariamente engenheiros ou arquitetos – profissão regulamentada em 1966. Eram “práticos licenciados”.

O primeiro presidente da AEAARP, Guilherme de Felippe, foi um desses profissionais licenciados. A Igreja Cristã Presbiteriana, na Rua Barão do Amazonas, erguida pela Companhia Predial de Ribeirão Preto, foi identificada como de sua autoria. Até o momento da conclusão desta reportagem, os pesquisadores não tinham todos os documentos dessa obra, datada de 1948, o mesmo ano da fundação da AEAARP. A construção segue preservada.

Na Rua Florêncio de Abreu, no primeiro quarteirão depois da Avenida Independência, há uma casa cujo construtor foi o engenheiro Hélio Foz Jordão, associado da AEAARP com intensa participação institucional. Esta construção é de 1952. Dentre as mais de 700 edificações identificadas na pesquisa, 39 estão tombadas, quatro delas abandonadas e duas em ruínas.

Do início de 2019 até agora, quatro edificações identificadas no levantamento foram demolidas. Uma delas estava sob regime de tombamento provisório e outra inserida no entorno de proteção de um imóvel tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (Condephaat). A atualização da situação dos imóveis também é possibilitada pelo SIG.

Além de reunir e disponibilizar a documentação de construções de valor histórico, a pesquisa mostra o que existia em terrenos que com o passar dos anos e as mudanças da ocupação do centro passaram a abrigar outros imóveis. O exemplo mais conhecido é o Palacete Innechi, também de autoria de Pujol Júnior, em cuja área foi construída uma agência bancária. E, ao final, o trabalho tem também a função de preservar a memória.

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