Profissionais de Engenharia e Arquitetura falam sobre a preferência brasileira pela alvenaria convencional em contraponto à diversificação dos processos construtivos mundo afora
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Alvenaria convencional, estrutural, paredes de concreto, paredes de EPS e wood, steel frame ou light steel frames combinados a uma gama variada de materiais de vedação, como placas cimentícias, drywall, OSB, entre outros [veja Glossário]. São muitos e variados os tipos de sistemas e subsistemas de construção utilizados em obras mundo afora [leia ‘Definições sobre sistemas construtivos’ nesta reportagem], mas no Brasil prevalece a utilização de menos da metade deles, com vantagem disparada para a alvenaria.
De acordo com o engenheiro civil e professor universitário André Zanferdini, a escolha majoritária por construções de blocos e tijolos no país tem a ver com a não-necessidade de mão de obra especializada, relação custo-benefício e disponibilidade de materiais [a grande oferta resultando em preços mais competitivos em relação aos dos materiais alternativos], mas também com a “falta de iniciativa, de planejamento, cultura vernacular e tradição fincadas no sistema construtivo existente desde o Brasil colonial”.
Vale lembrar que, no contexto acadêmico da arquitetura e engenharia, o termo vernacular refere-se a processos construtivos mais “raiz”, nas palavras do arquiteto e também professor universitário Flávio Cesar Mirabelli Marchesoni, pois possuem uma forte influência da cultura local, apoiando-se em técnicas e no uso de materiais da região em que a obra está inserida. “São vistos como rústicos sob um olhar mais desavisado, mas na realidade são altamente sofisticados por serem o que melhor podem responder às condicionantes do clima, da disponibilidade de recursos e com enorme eficiência energética passiva (o que entendemos por resposta bioclimática)”, ensina Flávio.
Como o barro sempre foi abundante e de fácil extração em todo o mundo e mais ainda em um país continental como o Brasil, o tijolo de cerâmica passou a ser utilizado por aqui desde os primórdios da ocupação europeia, por volta do século 16 [leia mais em ‘Origem dos Tijolos’], o que confirma a “cultura vernacular e a tradição fincadas desde o Brasil colonial”.
Já a falta de iniciativa e planejamento para quebrar paradigmas sobre materiais alternativos são privilégios das últimas gerações mesmo, e seria reforçada pela desconfiança popular, na opinião do também engenheiro e professor universitário Ricardo Gomes. “É uma questão até bem engraçada. Tem pessoas que, quando vão comprar uma casa, uma das primeiras coisas que fazem é dar uns murros na parede para ver se é sólida. E quando você tem uma parede em gesso acartonado, você bate e sente que é oco, né? Mas isso não significa que não seja uma parede resistente. Esses materiais são muito testados contra impactos pela indústria antes de serem colocados como alternativas de vedação. Se você está decidido a abrir um buraco nelas, até vai conseguir, mas precisará bater muitas vezes com marreta, ou seja, será tão difícil de furar quanto uma parede de bloco cerâmico”, comenta.
De acordo com Ricardo, a resistência a materiais alternativos nem sempre sai barata. “A gente tem uma série de problemas no Brasil que vêm justamente dessa tradição, desse gosto mais arraigado por coisas mais artesanais e tudo o mais”, diz, citando como exemplo casos em que é utilizado fechamento de alvenaria para steel frame. “A alvenaria não é a melhor opção para estrutura de aço mais pesada. São materiais que trabalham de maneiras muito diferentes. Pegando só a questão da temperatura, esses materiais se dilatam de formas diferentes. Temos uma série de patologias de construção associadas a isso, como trincas e fissuras”, afirma. Segundo o engenheiro, já há um consenso em utilizar placas cimentícias do lado externo e, para o lado interno, placas de gesso acartonado ou OSB.
Processos construtivos
Para o arquiteto Flávio, entre as quatro formas existentes de se construir algo – entre as quais se inclui a vernacular, já citada –, a alvenaria convencional pertence à categoria mais ordinária ou comum, que ele considera não muito eficaz por muitas vezes envolver grandes desperdícios de material, de trabalho, resultando em baixa eficiência energética, sem muita consciência do que efetivamente se está fazendo. “É o caso clássico de se fazer toda uma parede de alvenaria e depois se rasgar ela toda para instalar tubulações e eletrodutos, deixando para traz remendos que exigirão argamassar tudo para esconder as cicatrizes”, exemplifica.
Segundo ele, a terceira forma é o processo racionalizado, que pode ter vários níveis: desde o mais óbvio, de se planejar algumas etapas para já receber as posteriores sem que haja um retrabalho, até o que já atinge o quarto nível, representado pelos processos industrializados. Neste, a racionalidade seria tão ampla que se passa a não mais construir no sentido clássico do termo, mas a “montar” a edificação usando componentes previamente prontos, bastando apenas uni-los no canteiro de obras. “É só procurar no youtube por ‘edifícios com a construção mais rápida do mundo’ para ver exemplos, como edificações de hotéis de 30 pavimentos que são construídos em 30 dias e entram em funcionamento. Dessa maneira, nos dois extremos, quer no processo construtivo vernacular, quer no industrializado, há grande desempenho”, afirma o arquiteto.
Definições sobre sistema construtivo
No âmbito da construção civil, o “sistema construtivo” de uma obra caracteriza-se por
um conjunto integrado de subsistemas: estrutural, de vedação, elétrico e hidráulico,
entre outros, que são projetados e executados de acordo com normas técnicas préestabelecidas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
Tais normas estabelecem requisitos para os materiais, bem como para os procedimentos
de execução dos serviços de cada subsistema e, em especial, o atendimento aos
requisitos dos usuários do edifício quanto a seu comportamento em uso, isto é, seu
desempenho.
Esta reportagem aborda subsistemas de vedação — tecnicamente falando Sistema de
Vedação Vertical Interna e Externa (SVVIE), assim denominado na “ABNT NBR 15575-
4 Edificações habitacionais - Desempenho Parte 4: Sistemas de vedações verticais
internas e externas” —, definidas como partes da edificação habitacional que limitam
verticalmente a edificação e seus ambientes, como fachadas e as paredes ou divisórias
internas. Elas podem ser com ou sem função estrutural, comumente designadas como
alvenaria de vedação (convencional) e alvenaria estrutural, respectivamente.
O estrutural suporta cargas além do seu peso próprio, isto é, de laje, de pavimentos
superiores e/ou da cobertura. Como exemplos temos os sistemas construtivos citados
em alvenaria estrutural (armada ou não), o Wood Frame (estrutura de madeira) e o
Light Steel Frame (estrutura de aço leve).
Quanto ao subsistema de vedação, que suportam somente o próprio peso, ou seja,
servem só para vedar, separar e adequar ambientes, os sistemas construtivos podem
ser, entre outros, os citados em alvenaria de blocos e Drywall (gesso acartonado).
De uma maneira generalizada, tem-se três tipos de sistemas construtivos: o
tradicional, o racionalizado e o industrializado, que se diferenciam em relação
aos materiais, técnicas e tecnologia de execução, desempenho, prazos de execução,
custo, qualidade, uniformidade, entre outros aspectos.
FONTE: André Zanferdini, professor da faculdade de Engenharia Civil do Moura Lacerda
De acordo com Flávio, mundialmente, há hoje uma maneira genérica de se edificar que está mais intimamente vinculada à complexidade de industrialização dos componentes utilizados na construção que cada país tem do que baseada nas suas raízes culturais locais. “Países mais industrializados têm como tendência usar sistemas estruturais desvinculados dos seus fechamentos, constituídos muitas vezes com painéis, relegando a alvenaria a um segundo plano, pois esta exige um consumo de materiais maior, mão de obra maior, mais tempo de execução... cada vez mais incompatível com qualquer lugar desenvolvido no mundo”, diz, numa crítica implícita à alvenaria convencional.
Também na opinião do engenheiro André Zanferdini a construção civil brasileira poderia muito bem se beneficiar de sistemas alternativos numa escala maior que a de hoje, incluindo elementos pré-moldados e light steel frame “em tudo o que se referir à construção industrializada”. No que compete aos poderes constituídos, os governos poderiam, segundo ele, contratar projetos, na forma de concurso, que contemplem outros sistemas e materiais. “Quanto à iniciativa privada, a questão é determinada pelo projetista de arquitetura e/ou de engenharia, a quem cabe a definição dos sistemas e a especificação dos materiais, muito embora, em alguns casos, o mesmo terá de exercer seu poder de convencimento junto ao cliente ou proprietário. E em ambos os casos, qualquer iniciativa deve ser realizada por quem tenha o domínio tecnológico sobre esses sistemas e materiais alternativos”, conclui.
Mas Zanferdini alerta que, tendo em vista a existência de uma “interdependência entre alguns subsistemas da construção, a viabilidade técnica e econômica para a escolha de um sistema construtivo alternativo ou inovador torna-se complexa”. Por isso exige uma análise completa, considerando custo, estanqueidade, desempenho térmico, desempenho acústico, durabilidade, impacto ambiental, etc, e envolvendo todos os subsistemas da obra em referência. “Se não for assim, um sistema construtivo alternativo ou inovador pode proporcionar uma redução de custo em determinado subsistema e encarecer muito mais em outros. Por fim – e muito importante! – não se deve esquecer a análise da percepção dos moradores sobre o uso dos sistemas construtivos inovadores”, declara.
Parâmetros de escolha
Na prática, atualmente quatro critérios principais norteiam a escolha de qual sistema será usado numa obra, de acordo com Ricardo Gomes: custo, tempo de execução, função da obra e – mais recentemente – sustentabilidade.
O custo é afetado pela relação de oferta e procura dos materiais no mercado. Por exemplo, no Brasil, a preferência pela alvenaria torna a produção de blocos e tijolos de cerâmica economicamente atraente, levando muitas pessoas a investir no negócio. “Com muita oferta, os preços desses materiais ficam muito mais competitivos que os dos materiais mais alternativos com pouca procura no país”, pontua Ricardo.
O tempo é o de duração da obra, que pode afetar ou ser afetado pela escolha do sistema construtivo. Para exemplificar como o uso dos materiais para a vedação pode afetar o tempo de obra, Ricardo compara o de construção de uma casa padrão em alvenaria com cerca de 150 m², no Brasil de hoje, com a do famoso edifício de mais de 100 andares, Empire State Building (Nova York - EUA), em 1930, que utilizou estruturas de aço e placas cimentícias: pouco mais de um ano em ambos os casos.
E para ilustrar como o tempo pode influenciar o custo, o engenheiro cita a obra de um edifício de 57 andares, na China, cuja evolução foi filmada em time lapse e o vídeo postado na plataforma Youtube. Tudo o que foi utilizado de estrutura no edifício – estruturas metálicas, placas de vedação e até a laje seca – foi fabricado antes em uma indústria, já com as tubulações de ar-condicionado, esgoto, água e eletricidade embutidas com precisão milimétrica. No canteiro de obras, tudo foi encaixado, parafusado, soldado e rebitado. Feitas as ligações e dados os toques finais nos acabamentos, o edifício todo ficou pronto em apenas 19 dias.
Para Ricardo, o custo de fabricação das estruturas, vedações e outros materiais do edifício chinês pode ter ficado muito mais alto que o de um equivalente em alvenaria, que levaria muitas vezes esse tempo de duração, mas o custo da mão de obra, paga em horas de trabalho, deve ter resultado bem menor.
O engenheiro usa a mesma obra como exemplo de outro parâmetro citado como norteador das escolhas de sistemas construtivos: sustentabilidade. “Em um edifício no qual todas as estruturas chegam praticamente prontas para serem encaixadas eu não vou ter resíduos, porque a fábrica já terá feito tudo da maneira mais eficiente, desperdiçando o mínimo possível de material. O canteiro resulta limpo e organizado”, comenta.
A sustentabilidade, aliás, é o grande ponto a favor dos sistemas chamados “secos”, que eliminam a necessidade de misturas de cimento, areia e outros materiais com água nos canteiros de obras, caso dos wood e steel frames e dos blocos de gesso ligados com gesso-cola, por exemplo.
Por fim, o parâmetro “função” (define se a obra servirá para abrigar residência, alguma atividade, comercial, industrial ou de prestação de serviços, entre outras) pode influenciar a escolha do sistema por diferentes motivos. Por exemplo, se uma pessoa física não reúne condições financeiras de comprar todo o material da obra no mínimo tempo requerido, pode fazê-lo aos poucos, conforme o avanço da obra em alvenaria, que deverá seguir lenta. Já se uma pessoa jurídica tem pressa em erguer o edifício que abrigará sua atividade econômica, pode preferir o combo estrutura/vedações pré-moldadas. No Brasil, por motivos já elencados, esses sistemas podem sair mais caros que os de um edifício equivalente em alvenaria, mesmo considerando gastos menores com tempo de mão de obra, mas em outros países isso não acontece.
Escolhas pelo mundo
Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos os subsistemas de construção a prevalecerem nas unidades menor do que no caso de casas construídas com paredes mais leves e flexíveis?”, provoca Ricardo.
Sobre a origem dos tijolos
Observar a modificação de consistência do barro, que endurecia sob altas temperaturas,
levou à descoberta da cerâmica pelas antigas civilizações. Inicialmente, as cidades
foram construídas com tijolos de argila crua secos ao sol e, posteriormente,
queimados em fornos, o que transformava a terra crua em material cerâmico.
Os vestígios mais antigos da utilização de cerâmica em abrigos humanos datam de
7500 a.C, no Oriente Médio. A História conta que o tijolo de cerâmica é utilizado
desde 4.000 a.C. Por séculos as civilizações utilizaram o material para erguer
edifícios resistentes à temperatura e à umidade.
Depois que a Revolução Industrial trouxe a produção de blocos cerâmicos em grande
escala, o uso dos tijolos passou a ser aplicado na Europa e em todo o mundo. No
Brasil, é utilizado desde os primórdios de sua ocupação europeia, por volta do século
16, tendo sido Salvador e Recife as principais cidades a utilizarem o material.
Entretanto, o material cerâmico tornou-se essencial no país a partir de 1850,
revelando-se como elemento principal no sistema construtivo brasileiro, especialmente
nas últimas décadas do século 19 e no início do século 20. Naquele período, porém,
dividiu as funções estruturais com a pedra, fato notável em diversas construções
remanescentes no país.
Até hoje a cerâmica é um dos materiais mais usados na construção civil mundo afora.
FONTE: https://princesa.ind.br/tijolos-de-ceramica-tradicao-e-historia-na-construcao-civil/
Por isso é que, segundo ele, é comum se encontrar esse tipo de vedação em outros países sujeitos a abalos sísmicos, como o Japão, que tem também uma frequência grande de terremotos, como até o Chile, em plena América do Sul. “No Japão eles têm um apelo muito forte para as construções que utilizam wood frame, mas com técnicas diversas das dos Estados Unidos. Então pode ser uma estrutura de madeira com fechamentos bem diferentes, como películas que são quase um papel transparente, que às vezes vemos em filmes”, comenta o engenheiro.
Na China e por todo o continente asiático não prevalece, como no Brasil, preferência por um ou outro sistema, de acordo com Ricardo. Aliás, em nenhum outro país do mundo, ao menos não na proporção da que ocorre no Brasil na preferência pela alvenaria convencional. “Hoje em dia não se pode dizer que em um continente está sendo mais utilizado um ou outro sistema construtivo, principalmente quando se trata de Europa, porque existe uma diversidade de países com uma gama absurda de sistemas diferentes. Em termos de mundo, a gente tem até casas sendo impressas em impressoras 3D”, afirma.
Ainda falando em Europa, um continente repleto de patrimônios turísticos e culturais seculares, Ricardo lembra que em determinadas regiões, até por questões de preservação, seria um contrassenso usar wood e steel frames. Nesses casos, normalmente os sistemas construtivos seguem a tradição vernacular.
Glossário
EPS (Expanded PolyStyrene): sigla internacional do Poliestireno Expandido, polímero [veja matéria a respeito nesta edição] mais conhecido no Brasil pela marca “Isopor”;
Wood frame: ‘travessas de madeira’ em tradução livre, denomina sistema de construção constituído por perfis de madeira que, em conjunto com placas de diferentes materiais, formam paineis estruturais capazes de resistir às cargas verticais (telhados e pavimentos) e perpendiculares (ventos);
Steel Frame: ‘travessas de aço’, em inglês, denomina sistema construtivo a seco feito com perfis de aço galvanizado. Seu fechamento é realizado com placas de diversos materiais, dispensando o uso de tijolos, cimento e concreto;
Light steel frame: steel frame com liga metálica mais leve;
Drywall: em inglês ‘parede seca’, denomina placas de gesso acartonado, que costumam revestir estruturas de wood, steel ou light steel frames.
OSB (Oriented Strand Board): o significado da sigla, em inglês, é ‘painel de tiras de madeira orientada’, em tradução livre. O composto de raspas e tiras de madeira de reflorestamento organizadas na mesma direção e ligadas com resina resulta em placas resistentes, estáveis e versáteis para uso na construção civil;
Espuma expansiva de poliuretano (PU): material selante e adesivo que preenche espaços e possui ótima aderência em madeiras, alvenarias, metais, plásticos, sendo especialmente indicado para fixação de batentes, portas, janelas, entre outras superfícies, mas também pode ser usada como preenchimento de vedações em construções que demandam grande isolamento térmico e/ou acústico.