O país chamou a atenção do mundo ao erguer um hospital em dez dias e acendeu uma questão para o setor da construção civil no Brasil: por que não fazemos igual?
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O hospital Huoshenshan foi construído em 34 mil m2 (o equivalente a quase cinco estádios de futebol), com dois pavimentos, mil leitos, trinta unidades de terapia intensiva e dez salas de isolamento, distribuídas em 25 mil m2 de construção.
A obra começou em 23 de janeiro e foi entregue no dia 2 de fevereiro. 100 tratores e quatro mil trabalhadores ocuparam o local em três turnos, durante 24 horas por dia. Foram utilizadas estruturas metálicas pré-fabricadas unidas por parafusos, seguindo o exemplo do Hospital Xiaotangshan, em Pequim, construído em duas semanas, durante a epidemia de Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2003.
A fábrica chinesa de concreto que fez as fundações da estação brasileira na Antártica constrói prédios de 20 andares em três meses. Esse é um dos exemplos da tecnologia construtiva da China, que chamou a atenção do mundo em janeiro de 2020 quando o hospital de Wuhan foi construído em dez dias - prazo impensável para a maioria dos países do mundo – como parte da estratégia de combate ao novo coronavírus, causador da Covid-19, doença que afetou todos os continentes do mundo. A cidade chinesa, com 11 milhões de habitantes, é considerada o epicentro da pandemia.
Logo após a inauguração, o país anunciou a abertura de um segundo hospital na cidade de Wuhan, o Leishenshan, construído também em 10 dias, com 1,6 mil leitos, enfermaria de isolamento, área de exames e acomodações para médicos.
Para o engenheiro civil Roberto Maestrello, pós-graduado em engenharia de estruturas e diretor da empresa RTS Engenharia, a agilidade e eficiência das construções chinesas se dá pelo uso de estruturas pré-fabricadas, antecedidas por longo estudo e planejamento.
Roberto explica que os módulos, geralmente metálicos, são produzidos em fábricas, com precisão e em série, depois transportados e içados na obra, através de equipamentos de elevação e transporte, seguindo cronogramas rígidos e organogramas exaustivamente treinados e repassados ao pessoal de obra. “A construção acaba sendo uma grande montagem em série, como acontece em uma linha de montagem de automóveis, de eletrodomésticos, etc.”.
O engenheiro argumenta que o feito chinês foi possível devido ao investimento em inovação e pesquisa em avançado sistema de pré-fabricação, que utiliza mão de obra especializada, maquinário de ponta e reduz o consumo de energia e poluição ambiental.
“A industrialização de estruturas metálicas, onde quase que a totalidade do tempo de produção ocorre nas fábricas, com ambiente controlado e precisão milimétrica, juntamente com o içamento e montagem das peças no canteiro de obras, otimiza a construção de maneira geral”, afirma.
A arquiteta Mariluz Gomez Esteves, especialista em arquitetura do sistema de saúde e diretora executiva da Pró-Saúde - Arquitetura, Planejamento e Consultoria, explica que na China os arquitetos/projetistas escolhem os itens que vão utilizar e projetam a partir desta disponibilidade. “Isto ocorre inclusive com os banheiros, que chegam prontos nas obras e são instalados no local”, explica.
O país é um dos líderes mundiais em fábricas inteligentes, onde tecnologias são utilizadas para aumentar a eficiência da produção. A indústria 4.0, caracterizada pela aplicação intensiva de tecnologias da comunicação e da informação na indústria, complementa o setor de construção e agiliza o processo em obras emergenciais, como os hospitais construídos em Wuhan.
O engenheiro ambiental e de segurança do trabalho Nicolau Gentil Iucif trabalhou na montagem da estação brasileira na Antártica e acompanhou de perto a fabricação das estruturas pré-fabricadas na China. “Os pilares de lajes, paredes e portas, todos são pré-moldados, feitos em uma indústria de concreto e transportados e montados no local da obra. Isso facilita e agiliza muito a construção. É uma característica impressionante dos chineses”, diz.
Soma-se ao sistema de construção modular, a questão de os trabalhadores ganharem por empreitada, acrescenta Nicolau. “Se o trabalhador concluir em um ou em três dias o valor será o mesmo, o que traz mais produtividade para o sistema construtivo chinês”.
João Paulo Torres, engenheiro eletricista, com mestrado em inovação na construção civil e diretor da Sálix Engenharia, enumera outros fatores que também podem ter contribuído para a entrega do hospital em curto tempo. Dentre eles: a grande quantidade de equipamentos, como guindastes e escavadeiras; a fabricação local de todos os insumos necessários para a construção da edificação, sem necessidade de importação de materiais e/ou equipamentos; a disponibilidade, no estoque, de fabricantes de equipamentos de climatização, centrais de gases medicinais e equipamentos de backup de energia compatíveis.
O local da construção, com terreno favorável e pouco desnível, o solo previamente analisado com facilidade para fundação rasa e disponibilidade de área de canteiro para logística e armazenagem, além da padronização dos ambientes com baixa complexidade de construção, sendo, em sua maioria, leitos de internação, também são fatores considerados para o prazo recorde de construção, argumenta o engenheiro.
Engenharia hospitalar
Os projetos e obras hospitalares enfrentam grandes desafios. Prazos enxutos, a busca por novas tecnologias, a escassez de mão de obra especializada, a execução da obra com o hospital em funcionamento e o cuidado com o impacto da intervenção civil para os pacientes são alguns deles, segundo a arquiteta hospitalar Ana Carolina Meirelles Bonissi.
“Além disso, a engenharia hospitalar precisa atender todas as normas técnicas exclusivas, que proporciona o funcionamento harmonioso, como o tratamento de ar, requisitos para segurança, mobilidade, entre outras, e também atender as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que possui diversas particularidades para a aprovação do alvará sanitário para Estabelecimentos Assistenciais de Saúde (EAS)”, destaca.
Para a arquiteta, a construção pré-fabricada possibilita assertividade em relação ao cumprimento e encurtamento do prazo da obra e contribui para torná-la mais sustentável. Ana Carolina é de Ribeirão Preto e trabalha para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, onde desenvolve e acompanha os projetos de reformas, expansões e novas unidades da instituição. Segundo ela, as estruturas pré-moldadas já são utilizadas no hospital em duas situações: nas expansões de estruturas já existentes, como, por exemplo, na expansão da unidade Morumbi e do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch (M’Boi Mirim), e nas reformas de estruturas para a instalação do serviço hospitalar. “Neste último caso temos a Klabin, que é uma unidade ambulatorial, e a Clínica Einstein Anália Franco”, explica.
O engenheiro João Paulo afirma que as estruturas de concreto pré-moldado ou as metálicas são encontradas nas construções hospitalares na parte estrutural, composta por vigas e pilares. Já as instalações e acabamentos, na maioria dos projetos, ainda são executadas nos canteiros de obra, com baixa industrialização.
“A maioria dos projetos hospitalares no Brasil utiliza como característica o concreto armado, moldado in loco, proporcionando mais agilidade, flexibilidade, facilidade de manutenção e industrialização à construção.”
A arquiteta Mariluz concorda que a construção de hospitais de emergência a partir de itens prontos reduz o tempo de obra, mas argumenta que as mesmas estruturas dificilmente atendem as necessidades específicas das edificações hospitalares tradicionais. “Construir hospitais de campanha em campos de futebol é uma coisa, fazer um hospital em um terreno urbano, acidentado, é outra”, alega.
Mariluz argumenta que em sua experiência profissional, já realizou diversas tentativas para utilizar peças disponíveis no mercado da construção, mas o tamanho das peças não atende a necessidade do projeto hospitalar. “A montagem tipo ‘lego’, se feita com vários pavimentos, não se mostra estável o suficiente para a operação hospitalar. Se tivermos que fabricar as peças necessárias e ancorá-las para ter a estabilidade necessária, a construção se tornará, nas condições atuais da indústria da construção, muito mais cara que a convencional”, ressalta.
Segundo ela, a maior dificuldade na construção hospitalar são as instalações. Um hospital exige diversos sistemas de instalações complexas, desde os elementos de controle e combate a incêndio, que são absolutamente distintos de uma edificação comercial ou habitacional, até instalações que só existem nos estabelecimentos de saúde, como gases medicinais, vácuo clínico, etc.
Por que a engenharia brasileira não é tão ágil quanto a chinesa?
Adoção da metodologia BIM pode conferir agilidade aos projetos industrializados
Para o engenheiro Roberto Maestrello, os motivos são históricos, culturais e de escolha de prioridades, que resultam, principalmente, no baixo investimento em pesquisa e na fabricação e montagem de elementos construtivos.
“O Brasil, apesar do enorme déficit habitacional, de infraestrutura, de saneamento e de transportes, ainda está no discurso e longe da prática, porque pouco se importou em investir nesse sentido, coisa que americanos, ingleses, alemães e notadamente os chineses têm feito com abnegação e inteligência”, alega.
Roberto destaca que, ultimamente e com certa timidez, é possível ver obras sendo desenvolvidas no campo de infraestrutura de pontes, viadutos, na escavação e concretagem de túneis, nas novas ferrovias e também em construções comerciais e industriais. Mas, por questões que ele classifica como culturais, no Brasil ainda há receio em relação às paredes de “dry wall” (sistema de placas de gesso acartonado escoradas por estruturas metálicas) nas obras residenciais ou o uso do painel de “piso wall” sob o piso.
“É imprescindível que os institutos de tecnologia, as escolas de engenharia, o poder público, as associações de classe e a indústria estejam engajados e inseridos nesse conceito de construção para que o Brasil embarque nessa trajetória de progresso”, defende Roberto.
O engenheiro João Paulo Torres argumenta que, apesar de a construção modular não ser comum no Brasil, a industrialização do setor tem crescido. Dentre as práticas que têm sido cada vez mais usadas, ele cita técnicas como Lean Construction - metodologia usada para otimizar a produção, reduzindo desperdícios e buscando melhores prazos - e a racionalização da construção civil, que passa por materiais inovadores, projetos eficientes até chegar ao canteiro de obras com menos desperdício e maior produtividade.
A adoção da metodologia BIM (Building Information Modelling), na visão da arquiteta hospitalar Ana Carolina Meirelles Bonissi, é importante para conferir agilidade na construção civil no Brasil onde, segundo ela, o método é adotado por apenas 10% das empresas.
O engenheiro civil Roberto Maestrello destacas algumas iniciativas de construção utilizando estruturas pré-fabricadas na região de Ribeirão Preto. Segundo ele, além de alguns conjuntos habitacionais produzidos com paredes de concreto moldadas industrialmente nas obras, há trabalhos pioneiros de execução de conjuntos habitacionais através de estruturas pré-fabricadas mistas de metal/concreto, executadas parte com pré-fabricação na indústria e parte em obras.
Entre os exemplos estão a ponte sobre o rio da Onça, em Sertãozinho, construída nos anos de 1970; o pavimento misto em edifício industrial na Av. Castelo Branco, feito nos anos 1980; a utilização de formas deslizantes na execução do canal inclinado da Av. Francisco Junqueira, nos anos de 1970, baseado em estudos e obras de caixas d´agua executadas com formas deslizantes e/ou trepantes, largamente disseminadas no Brasil a partir dos anos de 1960.
A execução de paredes em concreto armado através de formas trepantes em edifícios de armazenagem de açúcar a granel nas usinas São Geraldo, em Sertãozinho, e Santa Fé, em Nova Europa.
A construção de pontes de concreto em vigas pré-moldadas na Rua Florêncio de Abreu com Av. Francisco Junqueira, sobre o córrego Retiro Saudoso; na ponte da Av. João Fiusa, sobre o córrego Ribeirão Preto, e na ponte da Avenida João Goulart, no final dos anos de 1980.
O pavimento sobre o escritório do CREA-SP, na sede da AEAARP, é pré-fabricado. Foi montado com materiais metálicos e alternativos em 2011.
No viaduto na Av. Maria de Jesus Condeixa, que está em construção sobre a Av. Francisco Junqueira e córrego do Retiro Saudoso, em Ribeirão Preto, as vigas são pré-moldadas de concreto protendido. São produzidas em canteiro na av. Maurilio Biagi, para depois serem transportadas e içadas sobre os pilares no próprio local.
“Todas essas construções têm caráter inovador e pioneiro, que trouxeram ganhos em tempo e em execução”, ressalta Roberto.